A História de Cada Açaí

da floresta à mesa, o açaí é também uma história de pessoas e de políticas públicas

17/02/2022 18h31 - Atualizada em 25/04/2025 09h53
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Enquanto no bairro do Coqueiro, em Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém (RMB), a empresária do ramo automobilístico Thairis Kapp, de 33 anos, de três a quatro vezes por semana acorda às 7h pensando em colheradas de açaí, a quase 300 km dali, no Arquipélago do Marajó, o extrativista Eliel Souza, 32, já está com a peconha em ação, colhendo frutos na várzea da ilha Carmões. 

Entre Thairis, uma consumidora voraz de açaí, que só não toma todo dia por questão de tentativa de regrar dieta, e Eliel, agricultor familiar herdeiro de gerações de camponeses, existe uma cadeia produtiva que é símbolo da cultura paraense.

O açaí é um “ouro negro” que alimenta uma tradição secular e que movimenta, sem parar, milhares de trabalhadores e bastante dinheiro, sob o impulso de políticas públicas do Governo do Estado do Pará, muitas sob gestão da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater).  

De acordo com dados da Secretaria de Desenvolvimento Agropecuário e da Pesca (Sedap), o Pará é o maior produtor de açaí do Brasil, com volume anual de mais de um milhão e 300 mil toneladas, em quase 200 mil hectares de área plantada ou manejada, com uma receita, por ano, de quase R$ 800 milhões e geração de renda para cerca de 150 mil paraenses. 

 

Cíclico

Thairis sorve meio litro de açaí por ocasião , com farinha de tapioca à vontade e duas colheres de açúcar - hábito desde a infância que a consagra como bem entendida no assunto, segundo ela: “Nunca cheguei a fazer loucura por açaí, mas já devolvi no restaurante, por detectar azedo, e às vezes meu horário de entrada ou saída no trabalho eu flexibilizo conforme os horários disponíveis de açaí pra vender ou pra ficar pronto”, diverte-se, só que falando sério. 

Thairis compra sempre de uma vizinha, cujo fornecedor é do bairro do Bengui. A vizinha informou a procedência e confirmou que é tudo certificado.

“Porém a origem do açaí mesmo, eu vou ao Combu, sei que tem açaí lá, entretanto não tinha parado pra pensar: e este que eu tomo com tanta vontade, este tão delicioso, de onde vem? Quem pega de cada palmeira? Eu até fico tocada pensando que na tigela do meu açaí existe a história de um povo que de repente também é a história do meu pertencimento, da minha raiz”, comove-se. 

 

As Ilhas de Melgaço

 Em Melgaço, o escritório local da Emater percorre a geografia recortada da zona rural: um desenho de ilhas, que são assentamentos federais cujas marés de um lado desembocam em belas praias, e, de outro, constituem várzeas com quilômetros de açaí nativo. A partir da sede do município, o acesso em geral é de 12h de viagem por rabeta nos rios Anapu, Tajapuru e Mapari. 

 O atendimento representa capacitação contínua para manejo, intermediação de crédito rural, gestão empresarial e organizações sociais, no desbravamento daquele que é considerado o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do país (IBGE, 2016). 

“É uma socioeconomia forte, que ampara cadeias produtivas significativas, apesar disso enfrentam a invisibilidade dentro do próprio Pará, falta de reconhecimento. Quem está lá na ponta, digamos que no centro da capital, nem imagina o tanto de vida humana, de vida biológica, os recursos naturais, a biodiversidade, e sobretudo o Serviço Público que existe em parceria com as populações”, destaca o chefe do escritório da Emater ali, José Nilton Silva, engenheiro agrônomo, especialista em Agronegócio e em Biocombustíveis. 

 

Neste mês de fevereiro, 13 famílias de dois assentamentos, Ilha Capinal e Ilha Grande do Laguna,  receberam um montante de mais de R$ 400 mil para aumentar a produtividade, com liberação pelo Banco da Amazônia (Basa). 

 Para o superintendente regional do Pará e Amapá do Basa, Edmar Bernaldino, essa iniciativa é uma premissa do Banco em relação ao Marajó: “A região tem uma forte característica de agricultura sustentável - e nisso assinalamos o extrativismo de açaí, que tem absorvido o maior volume de crédito”, reforça. O gestor afirma que ano passado o Banco da Amazônia aplicou em Melgaço R$ 1 milhão para a agricultura familiar. 

 

A Ponta

 Eliel foi um dos contemplados agora, com R$ 33 mil.

Ele mora na vila Mar de Galiléia, comunidade São Francisco do Arienga, na Ilha Carmões, às margens do Rio Anapu, dentro do assentamento Laguna, junto com os pais, Manoel José Souza, 70, e Maria Faria 68. 

Parte do açaí é nativa, parte do açaí é plantada. A propriedade tem “alguns hectares”, calcula o extrativista. “A natureza que Deus dá é muito imensa. A gente até perde a vista, perde a conta”, sorri. Além de açaí, a família trabalha com banana, cacau e cupuaçu. 

O apoio da Emater vem sendo essencial: “Posso dizer que mudou a vida, porque é uma coisa inédita. O crédito, então, vai ajudar demais”, conta.

 Na hora da colheita, uma lida de costume no entanto árdua, Eliel e os pais acreditam que estejam fazendo o bem para muitas pessoas: “Estamos alimentando com saúde, riqueza. Eu queria dizer pra quem toma este açaí que ele é colhido com muito carinho e muita dedicação, que a gente coloca nele um conhecimento que vem de justo tempo, dos nossos bisavós”, transmite. 

 O açaí de Melgaço abastece o mercado local, o pólo Breves e, por meio de atravessadores, é levado longe.

 Até, por exemplo, Belém. 

 

 Os Sommeliers de Açaí

Na madrugada da Feira do Açaí, no cais do Ver-o-Peso, o barco chega de Breves. 

No atracamento rotativo de muitos cantos do Pará, o açaí do Marajó é rotulado como de primeira linha.

“Aqui é uma indústria que não cessa. Não existe crise para o açaí. Nem a pandemia afundou a economia do açaí. É tipo uma bolsa-de-valores, sabe? Os preços variam, mas o Real gira”, explica um vendedor, que não quis se identificar. 

 4h30 da manhã, ao que os cunhados Breno Maia, 24, e Carlos Gemaque, 44, negociam rasas e paneiros. 

“Tem rasa de R$ 60 a R$ 100, dependendo da qualidade. Cada uma dá pra bater uns dez litros, cinco litros se for papa, papa - aí varia a grossura. O açaí bom mesmo é o fresquinho, nativo, de várzea. Ninguém engana ninguém. Só vem gente que conhece mesmo comprar”, detalha Breno, não podendo mais falar, porque o furdunço das transações exige atenção. 

A dupla vende 300 rasas por Feira. 

É um ambiente bem masculino e frenético. Quem circula para comprar quase sempre são batedores: sommeliers de açaí, com lanterninhas específicas ou de celular, eles levantam caroço por caroço, enxergam contra a luz, provam, cospem, analisam. 

Ante trilha-sonora de um brega intenso, carrinhos-de-mão com carregadores musculosos e risadas de uma felicidade que parece que nenhuma fortuna suborna, como se não houvesse cansaço na madrugada, Aldenira Soares, 38, aparece. Ela é batedora de açaí do bairro de Canudos, proprietária do ponto "Açaí Maravilha", na rua Roso Danin.

“Venho aqui há quatro anos. De princípio eu tinha vergonha, receio, achava perigoso, mas é lugar onde se vende o melhor açaí”, declara, abraçada aos amigos. 

Mensagem de Gratidão

Se pudesse mandar uma mensagem para as pessoas que plantam, colhem e cuidam do açaí que é tão valioso para ela, a tomadora de açaí Thairis diria: “Vocês são incríveis! A energia do açaí não é só do fruto em si: é da história das pessoas que trabalham com ele também. Reconheço e admiro a força, a inteligência e a colheita. Muito obrigada por tudo o que fazem até que o açaí chegue à minha mesa”, emociona-se. 


Texto: Aline Miranda, com informações de Alcilene Costa (Ascom - Basa)

Fotos: Veloso Jr.